O Algoritmo do Cancelamento

Nos últimos anos tem sido crescente e a cultura do cancelamento. Cada vez se ouve mais que marcas, influencers e até pessoas comuns são canceladas. A questão é, e comecemos pelo início:

O que é um cancelamento?

A cultura do cancelamento é no fundo um boicote a marcas, pessoas famosas ou até mesmo pessoas sem exposição pública. Isto acontece quando uma dessas pessoas ou entidades faz algo que o público considera não só errado, como ofensivo, algo que vai contra os valores da audiência. Nesses casos, existe um cancelamento, que passa pelo público criticar, deixar de seguir/consumir conteúdos e fundamentalmente deixar de comprar. 

O termo “cultura do cancelamento” foi eleito em 2019 o termo do ano pelo dicionário Macquarie. Parece coisa do futuro mas a verdade é que esta necessidade de ser aceite está bem presente no nosso ADN. 

Se viajarmos no tempo e formos até aos nossos antepassados (e acredita não é preciso tanto tempo assim), a vida só era possível quando vivida em comunidade. Era necessário um grupo de pessoas com responsabilidades bem definidas para que todos contribuíssem para a sobrevivência da comunidade. Uns iam caçar, outros cuidavam das crianças, outros eram os curandeiros que cuidavam dos doentes, cada um tinha o seu papel.

Nesta época era impensável viver sem ser aceite, pelo que um dos maiores castigos era precisamente, deixar elementos da comunidade para trás, atirá-los à sua sorte, deixá-los para morrer. A necessidade de ser aceite, de ser incluído na comunidade era um mecanismo de sobrevivência. E isto explica muita coisa da nossa personalidade hoje em dia. Hoje, já ninguém morre por ser olhado de lado, por ter uma orientação sexual diferente, por ter ideias diferentes, mas nem por isso deixa de ser julgado e/ou de se sentir desconfortável com o olhar externo. 

Arriscaria assim dizer que a cultura do cancelamento é apenas uma versão moderna de algo ainda muito presente no nosso ADN. Afinal, já dizia o meu pai, a história está sempre a repetir-se e cá está ela, eis que em 2019 o cancelamento voltou a ser real. 

Onde é que entra a liberdade nesta cultura?

É precisamente aqui que a minha mente entra em loop e não chega a conclusões claras, por isso, decidi avançar. Por um lado, existe a liberdade de expressão, pelo que eu sou livre de dar a minha opinião sendo ela pró ou anti o que quer que seja. Mesmo em assuntos polémicos como crimes. Não há nenhuma lei que proíba eu ser a favor do homicídio, apenas proíbe a prática. Posto isto, eu sou livre de defender verbalmente as minhas ideias. Até aqui tudo certo, é o princípio da liberdade de expressão.

Por outro lado, as pessoas que me ouvem ou leem, são também elas livres de não concordando, deixarem-me de seguir, deixar de comprar ou dar a sua opinião. Então no final do dia, enquanto não houver leis que regulem o limite da expressão somos livres de verbalizar o que pensamos. Ou seja, quando é que deixa de ser opinião para ser ofensa? Cada pessoa está a praticar a sua liberdade. 

Em suma, eu sou livre de dizer mas terei de arrecadar com as consequências daquilo que digo. E até ver, isto é o que está a acontecer e parece-me perfeitamente justo, dado que eu posso sempre optar por não dizer. 

Vamos a exemplos, o Miguel Milhão fundador e chaircenas-filósofo da Prozis mencionou no linkedin que é contra a legalização do aborto. Ele é livre de ser? É!  Mas a sociedade também é livre de reagir como quiser a essa afirmação. No final do dia, sendo todos livres, resta-nos ter consciência das consequências de cada ação e decidir se vale o risco.

O que é que o algoritmo tem a ver com a cultura do cancelamento?

É simples, o algoritmo ao contrário do que muitos pensam não tem personalidade nem opinião, não é um deus todo poderoso a quem podemos meter cunhas para divulgar o nosso conteúdo. É até bastante linear, se muita gente mostrar interesse pelo teu conteúdo ele vai considerar o conteúdo relevante, logo vai mostrar ainda a mais pessoas por considerar o conteúdo extremamente útil. 

Ora, o que é que acontece num cancelamento? Acontece que o pico de visitas, comentários e partilhas não é propriamente pelo conteúdo ser útil. É precisamente o oposto, uma manifestação de indignação e crítica. Mas o algoritmo não tem como saber, então faz o quê? Aumenta a escala a da indignação, e dá ainda mais projeção à marca/ pessoa cancelada.E se começou por ter 5 mil pessoas indignadas no final do dia será conhecida por 50 mil, onde 45 só ficaram a conhecer pela dita “falha” geradora de todo o cancelamento e não por tudo o resto. É justo? Não me parece, mas eu disse que o algoritmo não era deus. 

Quais as consequências da cultura de cancelamento?

Académicos de várias universidades que se dedicam ao estudo destes movimentos, alertam para uma possível transição do cancelamento para o  bloqueio ao livre debate de ideias. Se cada vez que alguém der uma opinião não aceite pelas maiorias for boicotada, insultada e cancelada publicamente, é inevitável que aos poucos, exista privação de partilha de ideias. A falta de partilha provoca de imediato uma ausência de debate, sem debate não há pensamento crítico. Se não houver ideias opostas viveremos nós numa ditadura disfarçada? Será positivo perder o hábito de pensar? Que direito temos de ser a PIDE em pleno século XXI? 

Opinar é uma coisa. Ofender, insultar, insurgir um movimento de cancelamento é outra muito diferente. Podemos e devemos sempre opinar, o resto, deixo espaço para reflexão. Quem nos tornaremos no final de tudo isto? É por aí que queremos ir enquanto sociedade? 

“Na realidade, não haverá pensamento tal como entendemos hoje. Ortodoxia significa não pensar, não ter necessidade de pensar. Ortodoxia é insconsciência”.

Orwell, 1984.

“E se todos os outros aceitassem a mentira imposta pelo partido – se todos os registos contassem a mesma história – a mentira tornava-se história e viraria verdade”. 

Orwell, 1984.

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